29.11.12

ode à torrada

"As torradas, para este homem de normas e princípios, são quase um vício e verdadeiramente uma manifestação de gula insofreável, em que entram múltiplas sensações, tanto visuais como tácteis, tanto olfactivas como gustativas, principiando pelo brilho da torradeira cromada, depois a faca cortando as fatias, o cheiro do pão tostado, a manteiga a derreter-se, e enfim o prazer complexo da boca, do palato, da língua, dos dentes, a que se cola inefável película escura, queimada e macia, e outra vez o cheiro, agora dentro de si, no céu esteja quem tão sublime coisa soube inventar. Raimundo Silva, um dia, disse estas exactas palavras em voz alta, num rápido momento em que lhe pareceu estar transfundindo-se-lhe ao sangue a obra perfeita do fogo e do pão, que, em verdade, para ele, até a manteiga seria supérflua, dispensável sem maior desgosto, ainda que muito néscio terá de ser aquele que recusasse o que, acrescentado ao essencial, lhe redobra os apetites e os sabores, é esse o caso do pão torrado e da manteiga, de que vimos falando, seria também o caso do amor, por exemplo, se dele tivesse o revisor mais ampla experiência."



in "história do cerco de lisboa" de josé saramago

é assim de difícil mudar o meu pequeno almoço
do nestum para as torradas
para sempre