As tradições da tradição
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15-Jan-2007 | |
por Miguel Cardina. Originalmente publicado no programa canto nómada de André Moutinho.
Na Idade Média, a expressão tradutore traditore era usada para caracterizar o acto de traduzir. Quem traduz necessariamente trai. Ou, para utilizar uma expressão opular mais próxima de nós, quem conta um conto acrescenta um ponto. Mesmo que inconscientemente. Todos nós apropriamos de maneira pessoal as narrativas que lemos ou ouvimos, os gestos que fazemos, a própria língua que falamos. A aprendizagem cultural é feita, pois, como se estivéssemos num permanente jogo de segredos, passando a palavra ao companheiro do lado e recebendo-a recriada no final da roda. Quando transmitimos as histórias, os gestos, as palavras, é um pouco de nós que também ali vai. Se assim não fosse, o passado viveria tão colado à nossa pele que não seria outra coisa senão o próprio presente. Felizmente não é assim. Constantemente traímos. Deste modo, a pior traição é aquela que finge que não existe, aquela que acredita que entre o passado e o presente se estabelece uma relação de transparência, de continuidade absoluta. Quem nisto acredita, ilude-se: não só nenhum de nós transmite passivamente os legados culturais como, muitas vezes, aquilo que nos parece ter raízes profundas foi, na verdade, criado numa esquina próxima do tempo.
Os séculos XVIII e XIX foram particularmente pródigos na invenção de tradições. Estamos na altura em que se processa o nascimento dos Estados-Nação, e era necessário mostrar especificidades nacionais que legitimassem essas realidades políticas. O interesse pelas tradições populares – com o folklore, à cabeça – vem daí. O século XX prolongou este processo, no quadro dos totalitarismos emergentes. Entre nós, é possível apontar vários exemplos desta fabricação institucional de marcas identitárias designadas como eternas ou imutáveis. Dos ranchos folclóricos à domesticação do fado, do galo de Barcelos à portugalização da saudade, uma boa parte da cobertura ideológica do Estado Novo foi construída com recurso a este expediente. Nos dias de hoje, o processo de revalorização cultural das particularidades socais deixa-se frequentemente seduzir por esta invocação de uma memória supostamente mais «remota» e «autêntica». Repare-se como em alguns festivais étnicos ou feiras medievais é comum observar-se uma ânsia em reproduzir fragmentos cristalizados do passado, que acabam por patrocinar uma formatação mitológica da memória colectiva. Esta romantização do tempo e do espaço tem ainda um outro reflexo na rapidez com que se criam «tradições» e no modo indiscriminado como a palavra vem sendo usada: em diferentes lugares e circunstâncias, um acontecimento que se realize pela terceira ou quarta vez consecutiva arrisca-se a ser visto como uma «tradição recente». Esta estranha expressão dá conta de um certo conservadorismo difuso em muitas franjas sociais, que tendem a ver a simples invocação da «tradição» como argumento legitimador de acções e discursos que se pretendem colocar em prática. Curiosamente, o recurso constante à «tradição», mais do que introduzir acrescentos de memória, induz à amnésia. Uma comunidade obcecada pela nostalgia não é necessariamente uma comunidade mais atenta ao substrato cultural de onde vem. Pelo contrário, ela vive numa constante presentificação do tempo acontecido que dificulta a retrospecção crítica e tende a eliminar a diferença que o próprio passado constitui. Estas reflexões parecem-me particularmente interessantes no contexto específico da música vulgarmente etiquetada como «tradicional», «popular», «folk», «étnica», etc. Expressões enganosas se com elas se pretende sugerir algum tipo de pureza. Talvez «música nómada» – tomando de empréstimo o nome do programa – desse melhor conta daquilo que na maioria das vezes se ouve sob esse rótulo. Sem citar nomes, uma série de grupos portugueses tem vindo a mostrar que a música «tradicional» – ou «nómada», se preferirmos – não é menos criativa do que as outras. Encarando o passado como ruína, como vestígio, estes grupos têm feito música sem receio de utilizar descaminhos e invenções. Sabem, enfim, que aquilo que se chama «tradição» é apenas um conjunto de acrescentos sedimentados. Uma letra “d” a tentar, traiçoeiramente, encaixar-se no meio da palavra certa. |
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