17.5.07

I

Acendeu um cigarro e ficou à espera.
Com a noite, vinha o silêncio, uma tela branca onde podia pintar a cor que quisesse, a melodia que bem entendesse, o mais leve sussurro de matéria. Podia mesmo ouvir o seu corpo a funcionar, desde o bombear ensurdecedor até aos pêlos dos braços, levantados harmoniosamente numa ode ao arrepio.
Desde que se lembrava que tinha rituais estranhos, nesse silêncio.
Descia os degraus das escadas, medindo o peso, deslizar e o toc-toc dos seus passos na madeira. Acendia uma vela, que a luz da lâmpada de baixo consumo era de um estardalhaço que só podia pertencer ao ruído insuportável do dia, da luz do sol. Sem vela, não havia poesia, sem poesia, não havia vida.
Sentava-se no piano e martelava nas teclas, horas a fio, até que os pulsos pesassem, as costas curvassem perante tamanho desgaste. Ensaiava a o poesia daquele momento, persistindo em compassos e frases, ininterruptamente, até que não desviasse as notas, até que não precisasse mais de as procurar na pauta, nem no teclado, por já conhecer tão bem as suas posições. Na pauta, no teclado, na memória, na alma.
Aí, os pulsos deixavam de pesar, os músculos tesos do tronco estendiam-se e a melodia caía no seu lugar, montada passo a passo, interpretada passo a passo. Fluía.
No preciso momento em que a música fluía, no limiar da imperfeição, só um bocado mais além, levantava-se e ia-se embora.
A pauta ali ficava, esquecida, durante anos.

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